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CRÍTICA: THE BATMAN (2022)

Domingo, 6 de março de 2022. 

O mundo parece cair à minha volta. Não apenas o som da água batendo ecoa pelos meus tímpanos, como percorrem pelo meu corpo os arrepios advindos dos agressivos trovões. E enquanto esse misto de reações percorre o resto do meu corpo físico, a minha mão abre esta tela para iniciar o que uns podem chamar de crítica ou review, outros podem chamar de texto de opinião, como os que fazíamos na escola. Tal qual o personagem tímido afirma que pensam dele, estou escondido nas sombras; mas nas da minha própria casa. Não é nenhuma data especial, como o Halloween; mas se serve de consolo, restam menos de 30 horas para o Dia Internacional das Mulheres. E uma em especial tem importância aqui. Mas este texto não trata de feriados, porque esse é quase o único elemento de The Batman que não foi esculpido em carrara de O Longo Dia das Bruxas. Insisto no "quase", porque a escolha do vilão Charada também difere dos quadrinhos originais, escritos por Jeph Loeb (o criador do Hulk Vermelho) e desenhados por Tim Sale.

A homenagem é tamanha que quase atinge o limiar entre adaptação e transposição (apesar de ainda consistir na primeira opção). Desta forma, acho justo iniciar com alguns apontamentos dessa história em quadrinhos, antes de seguir para o filme. A história de Loeb narra diversos assassinatos de figuras especialmente corruptas. O que os une, além da trama de corrupção e máfia da cidade de Gotham, é o fato de que cada um era cometido em um feriado diferente. Assim, a polícia e o próprio encapuzado estavam cientes dos dias em que uma nova tragédia desse mesmo assassino ocorreria. Este, por sinal, ficou conhecido como Holiday (ou Feriado, em português). Sem entrar em spoilers, a questão é que o conjunto de assassinatos visava traçar uma linha que levasse a um ponto final, envolvendo um personagem em particular. A história se encerra sem que se tenha absoluta certeza de quem é o Holiday, podendo até ser mais de um personagem: Harvey Dent, sua esposa (Gilda) ou Alberto Falcone (filho de Carmine Falcone, que vimos em Batman Begins e em The Batman). Essa é uma das histórias mais famosas e renomadas do Homem-Morcego, e foi muitíssimo utilizada em The Dark Knight, de 2008, pois é nessas HQs que Harvey Dent assume a persona de Duas-Caras. Na verdade, eu diria que TDK é a soma de O Longo Dia das Bruxas com A Piada Mortal (com a diferença de que nesta o Coringa perde, enquanto no longa-metragem o personagem de Heath Ledger consegue corromper alguém).

Esboçada a trama desses quadrinhos e o uso relativo ao personagem de Dent feito no segundo filme da Trilogia Nolan, cabe dizer que The Batman pega todo o restante da trama de Loeb, e substitui Holiday pelo Charada. Assim, admito que a experiência que o longa transmite pode ser igual a todos, exceto quando se trata de revelações específicas que já são sabidas de cabo a rabo por quem leu a história original. É claro que isso não é um demérito; e, inclusive, em maior ou menor escala, é uma característica de todas as adaptações de quadrinhos para o live action. Aqui apenas compartilho que a minha experiência foi menos recheadas de "wows" em termos de revelações (inclusive uma de parentesco) e desdobramentos de investigações.

Admito que um texto que se propõe a comentar um filme, mesmo que baseado em uma obra de outra mídia; deveria abster-se de fazer comparações com tanta frequência, e focar na obra cinematográfica em si. Isso me parece categoricamente mais difícil aqui, uma vez que o diretor (Matt Reeves) trouxe todo o seu talento técnico para o longa, mas parece ter sido humilde o bastante para não afirmar "trarei a minha própria marca para esse personagem". O encapuzado e a própria Gotham de Tim Burton eram marcas do cineasta (basta assistir a Edward Mãos de Tesoura para encontrar semelhanças); o mesmo vale para o tom carnavalesco de Joel Schumacher e o realismo excessivamente pedante de Nolan, para resumir bem. O Batman de Reeves e Robert Pattinson é... o Batman. Tragam à memória os desenhos animados a partir dos anos 90 (a própria série solo, os desenhos da Liga da Justiça com e sem limites, as animações direto para home video). Tragam à memória o Batman dos jogos Arkham. Sintetizando, tragam à memória todos os Batmans dublados por Kevin Conroy. É claro que Pattinson não tem a voz grave como a de Conroy, mas o que está em questão aqui são os trejeitos do personagem. A frieza em suas palavras e atitudes, o modo de andar e de olhar, o ar misterioso que o cerca (mesmo quando andando normalmente entre policiais, como vimos no primeiro trailer). Nunca vimos esse Homem-Morcego antes. 

Bale trouxe um vigilante que poderia entrar facilmente como vocalista de uma banda de Black Metal, e que recebia em demasia o auxílio de Alfred e Fox (nos três filmes). Keaton, pelo próprio teor do fim dos anos 80, era muito cheio de trejeitos e não conseguia mover-se direito (isso para falarmos do Batman, porque se formos falar de Keaton enquanto Wayne...). Ben Affleck interpretou a versão mais visualmente fiel do personagem, em termos de figurino e elementos externos (Batmóvel, Batcaverna, a aparência e personalidade de Bruce Wayne em si); mas desagradou a muitos por ser um psicopata em Batman v Superman. Bale e Affleck investigavam, mas muito menos e com muito mais auxílio de outros. Val Kilmer e George Clooney apenas serão citados aqui para que possa dizer que nada direi.

Pattinson é tão detetive quanto o filme de 3 horas poderia nos proporcionar (e o Charada foi a escolha perfeita para isso), age como o personagem dos quadrinhos e animações (como já mencionado) e passa a maior parte do longa encapuzado. Essa é uma característica que pode parecer vazia de se mencionar, mas chega a ser clichê comentar que o capuz é o verdadeiro rosto, e Wayne é a máscara. Sendo assim, por que tanto Bruce Wayne nos outros filmes, em detrimento do Batman? O mesmo não ocorre aqui. A verdadeira máscara do milionário aparece em um momento; quando está em público (no funeral de um personagem importante para a cidade, como nos trailers). No restante das cenas em que o ator mostra o rosto completo, ainda assim é o Batman; até porque está sempre descabelado e com a maquiagem nos olhos. Pode-se dizer resolutamente que as poucas vezes em que o ator aparece sem capuz é porque a história requer; e ao menos três desses momentos são pura poesia e desenvolvimento de personagem. 

Dessa forma, o filme é do Batman em todos os sentidos, sobretudo dois. 1) Poeticamente, porque é a primeira vez que o vilão não rouba a cena completamente, não por demérito do sensacional Paul Dano, mas porque o roteiro decidiu deixar o personagem nas sombras. Quando o ator tem o seu espaço para mostrar a que veio, porém, é para brilhar como Edward Cullen nunca brilhou. A escolha desse profissional foi tão justificada que, ao contrário de Pattinson, todos concordaram com o seu anúncio, há tantos meses. 2) Literalmente, porque o herói está com o seu figurino durante a maior parte do tempo e não perdemos tempo com a vida do milionário. Uns questionaram que Alfred aparece pouco, mas se retomarmos para o que são os quadrinhos do Batman, quando o mordomo teve uma importância no nível da de Michael Cane? Todas essas proporções parecem acertadíssimas nesta nova versão do herói.

Apesar de toda a fidelidade ao material base, é indiscutível que essa adaptação conseguiu ser ainda mais pé no chão e realista do que os filmes de Christopher Nolan. Se no futuro continuará assim, não sabemos; mas para uma história puramente investigativa, não precisamos de zumbis, homens de barro, guerreiros imortais, ou a versão da DC de Morbius. Outro "apesar" é que, apesar de ninguém roubar a cena do herói, quem mais se aproxima disso é a Mulher-Gato de Zöe Kravitz. Repetindo o início do texto, a personagem foi esculpida em carrara dos quadrinhos (O Longo Dia das Bruxas e Ano Um), no melhor sentido; pois deixa de lado qualquer teor fetichista do longa de 1992 e qualquer teor... sem graça, do filme de 2012. Inserir datas é mais importante aqui, pois notamos que, exceto em uma das décadas, há uma nova Mulher-Gato a cada exatos dez anos (não vamos mencionar o longa com Halle Berry, correto?).

Kravitz traz, de forma igualmente distribuída, boas atuações, carisma, atitude, e propósito à personagem (uma boa parte disso apoiada inteiramente pelo roteiro e direção, que respeitam a personagem - como para o próprio Pattinson, claro). Assim como a versão de Hathaway, a personagem faz a trama do herói acontecer. A diferença é que a de 2012 parece fazer de tudo para f*der a vida de Wayne e do Batman durante todo o filme, mesmo quando estes se tornam a mesma pessoa aos olhos dela. A nova Selina Kyle faz a trama se desenrolar em consonância com o vigilante, e tem um arco igualmente muito próprio e muito inserido na trama principal.
O Pinguim de Colin Farrell é divertidíssimo, e eu não consigo entender quem desgosta desse ator. Nem todos precisam de um Oscar para serem apreciados à sua própria maneira (e, honestamente, ainda é possível que aconteça, eventualmente). Carmine Falcone de John Turturro tem mais carisma do que a versão de Batman Begins, tanto pela atuação quanto pela crucialidade deste no desenrolar da trama. Andy Serkis (é sempre bom vê-lo sem ser como personagem digital) traz um ótimo Alfred, mas pela própria natureza de ser mais fiel aos quadrinhos e expô-lo menos; o de Michael Cane segue sendo o favorito da grande maioria. O Tenente (coitado, passa metade dos filmes sem ser Comissário) Gordon de Jeffrey Wright é mais contido que o de Gary Oldman, mas em nada perde para ele. Afinal, cabe ao personagem em todas as mídias ser uma espécie de parceiro semi-passivo/semi-ativo do Homem-Morcego; que, pelo seu próprio papel de pessoa com pretensões de uma vida normal, continua surpreendendo-se com o que acontece.

A trilha sonora de Michael Giacchino (lembrem-se dele em Rogue One) é mais sutil do que a de Hans Zimmer para a trilogia The Dark Knight, mas isso era necessário para o tom investigativo do filme. Além disso, o seu tema é tão bom ou melhor quanto o de Zimmer; e muito remete ao da clássica série animada dos anos 90. A identidade visual, para diferenciar do bege de Begins, do azulado de TDK, e do branco de TDKR; opta pelo vermelho - o que funciona extraordinariamente bem, e não era necessário assistir ao filme para se chegar a essa conclusão. Porém, tendo-o visto, posso comentar que ela é utilizada com muita pertinência e crucialidade em cenas específicas, e de forma menos intensa no decorrer do filme. Não se trata apenas de uma identidade visual para a campanha de marketing, como ocorre em muitos casos.

Por fim, retomando o tom investigativo do filme, bem como a duração de três horas; arrisco dizer que este talvez seja o melhor longa do Batman, mas que The Dark Knight talvez ainda seja mais filme. Se formos tomar Seven como exemplo, por mais que possa ser revisto algumas vezes, há um limite para digerir a investigação. Esse gênero detetivesco em si tem como característica a perda do elemento revelador, que impulsiona o expectador na primeira vez que consome o produto. Por ser do Batman e mais recheado de ação, com certeza ganhará muitos pontos em termos de ser reassistido e permanecer no imaginário coletivo; mas será que superará TDK, nesse sentido? Para os fãs do personagem em si, no entanto, isso pouco ou nada importa; até porque Reeves parece ser aquele que mais entendeu o significado do herói. Não digo que o conceito de "ele é o herói que Gotham merece, mas não o que ela precisa agora. [...] Porque ele não é o nosso herói. Ele é um guardião silencioso [...]." seja ruim; mas a contraposição que Reeves faz entre vingança e esperança é muito mais efetiva, simples (portanto, digerível), e inspiradora. E talvez inspiração e esperança sejam o que mais necessitamos agora.
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